Inverno, insónias e mais insanidade

Lembram-se quando tinha dito na postagem prévia que traria algo mais leve? Pois, era a minha ideia, mas entretanto o Inverno chegou.

Não fisicamente, é claro, ainda falta pouco mais de um mês e três semanas para o Solstício que de facto marca a mudança de estação. Refiro-me àquele estado de espírito mais inerte, gélido e torpe onde delírios mentais que nos assolam às mais variadas horas da noite (mas nunca durante o dia, curiosamente) passam por introspeções, resumos da vida até agora. Aqueles momentos quando os olhos mesmo fechados estão pregados ao teto no escuro do quarto e o sono nunca chega, onde se contemplam aquelas vezes onde fizemos algo embaraçoso há meia década atrás ou arrependemo-nos de algo que fizemos ou ficou por fazer. No meu caso, é mais o último.

É claro que esta lugubridade psicológica não vem só do tempo em si; há sempre vários fatores em cima da mesa mas no meu caso a música é sempre o principal. Confesso que apesar de achar o tom saudoso do Manuel Cruz durante a sua performance na "Casa" dos Da Weasel ser um exemplo perfeito deste estado mental, ando a achar um novo refúgio frio e desolador nos tons agressivamente sublimes dos Agalloch, banda que informo já não é definitivamente para todos os gostos musicais (black metal sendo o que é, quanto mais uma mixórdia disso com atmosférico, um pouco de doom, folclórico e mais quaisquer outras salganhadas que ocasionalmente despejam nas músicas), mas que mesmo assim, recomendaria o álbum "The Mantle" a toda a gente que queira registar para referência futura o estado de espírito a que me refiro. Ou então, isto é só eu a promover um dos meus álbuns favoritos sob o disfarce de ser temáticamente relevante. Em todo o caso, avancemos.

É um pouco cómico que uma parte significativa deste post tenha sido escrita à uma da manhã, exatamente por esta razão descrita no início. A neurose que provém destes momentos noturnos é uma agente forte no meu livre arbítrio. Foi sempre um pequeno problema que tive, onde as palavras que me saem melhor da boca são aquelas proferidas na calada da noite, no período místico entre entrar dentro da cama e adormecer. Um período ora curto, por vezes, mas a maioria do tempo um martírio que dura uma hora. Talvez tenha insónias ou esteja pronto a desenvolver tal pesadelo. 

No início abri este blog como uma forma de me expressar poeticamente, algo num tom mais sério após uma breve passagem num blog que o meu irmão tinha e que penso que ainda existe, apesar de inativo, chamado "Memórias de uma Sombra". Mas com o passar dos tempos, especialmente agora que dei uma lida rápida, sinto que não levo nada muito a sério como dantes, isto inclusive. Não tenho muitos entraves a partilhar (por escrito, que em pessoa sou como um túmulo) pedaços mais pessoais da minha vida. São coisas que me mantém acordado durante este "inverno", uma época de frio psicológico antes do frio físico. São coisas como nunca ter dito a uma certa gata na faculdade que a amava, que pela primeira vez numa vida bastante confusa emocionalmente, tinha a certeza que, sim, isto era um sentimento real, não apenas uma exuberância e um grito desesperado de um ego a definhar por ansiar viver as mesmas experiências que os seus semelhantes. Já se passaram três anos e quase 6 meses desde que acabei a faculdade e a vi pela última vez, e apesar de ainda ter falado com ela uma ou outra vez desde então, nunca foi uma conversa que passou para lá do bom dia ou do parabéns. São coisas como, ainda no mesmo espaço de tempo, nunca ter ultrapassado o meu maior erro (e eu cometi bastantes) que levou à perda de uma das melhores pessoas que alguma vez conheci e que, com toda a confiança, alguma vez conhecerei. Ainda hoje tenho sonhos com isso, ainda hoje é tema de poema como forma de enganar a dor por mais um dia. Ainda hoje acordo e penso num futuro alternativo onde não tivesse sucumbido a demónios interiores que rapidamente passaram a exteriores naquele primeiro trimestre de 2022. Se calhar, as coisas teriam sido vastamente diferentes e sentiria uma certa felicidade em vez do vazio perpétuo que se recusa a preencher, que noto que me levou a fechar ainda mais para além da minha natureza reservada. Mas se calhar, não mudaria nada. No fim do dia, a minha inabilidade em manter amizades feitas fisicamente em algo acima a números de telefone guardados sela-me o destino. Se as pessoas são museus das suas memórias, então a página dos meus contactos no telemóvel é um cemitério de laços e sorrisos. Volta e meia, ainda consigo reatar algumas destas ligações que caíram em desuso mais depressa que a ferrovia do interior de Portugal, como aconteceu recentemente após andar a hesitar em mandar mensagem ao fim de quase dois anos. Afinal, como é que se começa uma tentativa de aproximação após tanto tempo distante? 

Não obstante às opiniões que nutro sobre mensagens e o facto das redes sociais permitirem o contacto com qualquer "contacto perdido" a qualquer altura em meros segundos (ou seja, a noção se é teu amigo ou não jaz pendurada, involuntariamente, na tese de que se não mandares mensagem, será que te manda mensagem para ti? Não comunica é porque não quer), isto tudo é apenas um prefácio para um dos muitos, muitos poemas que fiz ao longo do tempo que toca no Inverno, mas acima de tudo, no estado psicológico que me leva a redigir tudo isto até às duas da manhã na aplicação das Notas da Samsung:

 

“Winter Tears”

Inside, the memories stay.

So breathe the bitter cold air of winter
Trap the frost inside the lungs
In time, will it cool down the heart, or
Leave another discomfort within?
Let's not pretend anymore.

Those days are over.
How do you even remember me?
Is it the same way I remember you, or
Not the way you wanted to?
Killing myself just to chance living

As the past grows distant
Beyond lies the end
Of us.
Under the stars where we once dreamed
That we would stay together.

Here at every line lies the words
Echoes I could never say before
Released from the guilt of silence.

[18 Agosto 2024]


Quero só dizer que foi por causa desta amizade reatada que me apercebi que o segundo verso estava errado. É claro que corrigi aqui mas originalmente ele começava com o "Breathe" e não com o "So". É uma edição importante, porque este é daqueles poemas meus onde escondo uma segunda mensagem. Não é comum, por isso não fiquem agora à procura de mais nos posts passados ou futuros. Neste aqui, é o meu clássico "lê a letra inicial de cada verso". Estes poemas geralmente construo-os a partir da mensagem oculta, naturalmente, ao invés do clássico "verso-mestre", que detém a ideia original (frequentemente concebida neste período de tempo entre estar na cama e adormecer) e dele tudo o resto brota. Creio que não preciso de explicar tendo em conta a larga introdução, mas este é um dos poemas feitos mediante uma tentativa de lidar com a perda da dita pessoa. Para supresa de ninguém, sempre achei que emoções negativas forneciam melhor matéria que positivas, daí ter mais casos onde me debruço sobre este momento mais do que sobre amor (concretamente este não afirmado, porque de amor não é o que me falta na bibliografia, apesar de ser quase tudo proveniente dessa fonte desesperada por romance).

É um poema que até gosto bastante, tendo em consideração as circunstâncias da sua criação. Acho os versos "Killing myself to chance living", usando "chance" como verbo (em português algo como "matando-me para tentar viver") e "Released from the guilt of silence" particularmente fortes na visualização e emoção. Aliás, essa estrofe final é um pouco mais desengonçada temáticamente porque foi feita como "pista" para indicar que havia uma mensagem secreta, daí esse primeiro verso, "Here at every line lies the words". Não me quero desdobrar muito mais sobre o significado do poema original, tendo em conta que é algo claramente perceptível, onde o único jogo duplo é mesmo este primeiro verso que realcei (não gosto muito de falar do assunto, mas digamos que o meu braço está marcado por arranhões adquiridos de forma não natural).

Bem, algo mesmo pesado para deixar aqui, não é? É como disse, se a minha organização literária conseguiu deixar claro: não levo isto tão sério ao ponto de evitar falar casualmente de mim. Aliás, a primeira coisa que me vem à cabeça quando penso neste blog é algo que me foi dito até pela pessoa do poema: "É como uma conversa num café". Ela não disse no sentido tasqueiro, mas no sentido em que conversas de café são casuais, leves e fáceis de seguir. Não há complicações desnecessárias, censuras extraviadas. Só eu, quem fala, vocês, quem ouvem (ou lêem neste caso) e as palavras em si. E é essa atmosfera que quero manter. Mas lá está, no final do dia, é noite, e eu sou alguém mais desligado emocionalmente fisicamente, usando as palavras como meio não só de transmitir estas emoções que são silenciadas da boca para fora, mas como um escudo porque são proferidas à distância. Já para não falar dos vendavais espirituais e de toda uma série de deslizes mentais, depressão, ansiedades e outros que me fazem companhia. Talvez no futuro seja como o Jorge Palma e me vire para a garrafa, ideia que já foi menos apelativa no passado, mas por agora isto serve-me de igual forma. É por isto tudo que não sei o quão casual consigo manter isto antes de parecer que isto é menos "conversa de café onde alguém falar de poemas" e mais "conversa de café onde alguém quer mesmo falar de poemas como fachada para falar dos seus sentimentos", que é um pouco mais lunático.

Esta parte já foi escrita a horas de humano normal, com mais clareza para acabar em condições algo que começou num estado menos capaz. Por isso, perdoem-me então as tiradas mais longas e porventura mais pesadas a que vos sujeitei neste post, possivelmente o último deste ano e feito no dia antes de começar um emprego e que ainda não fui informado do horário do primeiro dia. Para efeitos anedóticos, quando finalmente parei de escrever e fui dormir já eram quase três da manhã e esta parte já foi redigida às 20 horas. Contudo, a constante aqui é que ainda não me disseram nada sobre o dito emprego. Será que vou faltar no que seria o primeiro dia por erros de outrém?

Independentemente das minhas aflições profissionais, queria deixar ainda um segundo poema aqui para começar a justificar um texto tão longo que é mais um despejo de informação que uma conversa. Apesar de ter postado acima um poema em Inglês, que me é tão natural que nem me apercebi que nunca mencionei que fazia tal coisa noutra língua que não a materna, quero apresentar um segundo, na língua de Camões, ora longo, mas penso que um pouquinho mais esperançoso para contrabalançar a fina camada de geada que teima em assentar com estes rabiscos torpes e emocionalmente frios. Este, já escrito este ano, é como que uma pseudo-continuação da ideia que fomentei com o poema partilhado há dois postos, no "Tirando o pó à casa". É uma expressão de querer continuar aonde parei, de percorrer os caminhos que ficaram ali a meio, à espera de serem caminhados. E é também embriagado, aqui e ali, por versos que partilham desta fonte gélida da insanidade invernal a que me sujeito nestas ocasiões:


“Começar”

Começar é o mais difícil.
A mão febril que teima em rabiscar,
não consegue engendrar
uma letra que seja.

Começar nunca fica fácil.
A cabeça pende para um lado,
num forte desagrado
sem que o deseja.

De tanto não começar que eu morro à nascença!
Ideias férteis que se tornam nados-mortos nesta desavença!
Talvez ache que seja melhor assim,
pois tudo tem o sem fim,
E este poderá ser o meu.

Mas se nunca comecei, como é que acabo?
E nesta pescadinha, na boca o rabo,
Perco tempo a pensar.

Às vezes, pensar é tudo o que me resta
Quando a voz não me presta
E todas as palavras foram já ditas.

(Até aquelas que nunca pude dizer, acham forma no silêncio de serem ouvidas, mesmo quando não as quis ou não consegui)

Dizem que nas estrelas estão os nossos desígnios
E mesmo que sejam constelações de caminhos ínvios
Será que ainda estás no meu?
Será que ainda pensas em mim?

Tanto tempo a acreditar que andava para a frente
E que a tua memória não me deixava doente
Percebo que nada o Tempo me deu
Nenhum ponto para marcar o nosso fim.

Nem sei se te amava ou se amava apenas a ideia de te amar.
Nem sei se sabia amar ou se amava saber como é que havíamos de começar.
Agora é um pouco tarde para perdões.
Talvez possa libertar a memória dos nossos corações.
Antes que o meu morra em clausura
E as lágrimas caiam na sua sepultura
À medida que me queimam os olhos.

Gostava tanto de te poder ouvir, de te ver
De te poder pintar de novo na minha mente
Relembrar a tua face antes que me esqueça de vez.
Mas há coisas que não podem ser, não devem acontecer
Não quero abrir o passado novamente
Enterrar facas nas tuas costas como naquele mês.

A mão febril teima em escrever
E deixo estas palavras para a memória que tenho de ti.

Começar é o mais difícil
Mas agora o resto fica mais fácil.

[07/02/2025]

Há uma certa incongruência na formatação das datas que recuso a estandardizar porque, de certa forma, faz parte do poema. Este, para além do que disse acima, é também um dos poucos poemas mais recentes onde rimo. Na verdade, há muito que tinha separado a rima do verso, fazendo poemas quase prosódicos na sua leitura. É claro que também acabam por ser mais fáceis, requerendo menos massa cinzenta para encaixar aqui uma rima, aplicar estratégicamente certas palavras para manter tudo dentro da melodia natural da rima e consequentemente, do poema. Lá está, após consideração, a poesia é uma música silenciosa, um som da alma não anunciado, não vocalizado externamente. É um pouco transcendente, talvez mais pessoal, mas menos ponderado e menos popular que a arte irmã. Tal como no poema anterior, este é daqueles fáceis de perceber e de provocar uma conexão com o leitor. Um mais relacionável, intemporal. A noção de incapacidade de dar aquele primeiro passo é uma experiência tão certa como pagar impostos ou morrer. É universal. É claro que aquela segunda metade, marcada pelo verso em parêntesis, desdobra-se invariavelmente sobre a mesma temática e pessoa a que o "Winter Tears" também se dedicou. Enfim, uma memória agridoce de tempos idos que me deixam ainda aquela mágoa no coração. Talvez nunca sare, mas se calhar, é melhor assim.

E pronto, penso que não tenho muito mais a partilhar por hoje. Acho que esta postagem já é longa o suficiente sem começar novos capítulos adicionais. Deixo é o álbum dos Agalloch porque de facto é uma boa obra-prima. Até lá, é só resguardar do frio e do Inverno que se azivinha.

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